Todo mundo na região sabe onde é a casa do padre Djacy
Brasileiro, bem ao lado da igreja de Pedra Branca. Mas ele pouco fica lá.
Seguimos os seus passos na seca da Paraíba
ALEXANDRE MEDEIROS.

Pedra Branca
(Paraíba) - O chapéu largo de palha é companheiro inseparável. Assim como a fé.
“Como missionário e como cidadão”, como ele mesmo gosta de frisar, o padre
Djacy Brasileiro costuma fazer incursões periódicas pelo Vale do Piancó, um dos
recantos mais secos e pobres do sertão paraibano. Registra tudo com fotos e
anotações, que muitas vezes vão parar em suas contas no Twitter e no Facebook —
ele tem mais de dez mil seguidores. “Não se pode ficar indiferente ao
sofrimento dessa gente. Muitos não têm o que comer. Temos que denunciar isso e
ajudar de algum jeito. Eu só entendo a Igreja se ela estiver ao lado das
pessoas mais sofridas”, professa o pároco de Pedra Branca.
Ele vem fazendo a sua
parte. Em 2008, quando era padre na Igreja de Bom Jesus, em Sousa, construiu
uma grande cruz de lata e levou-a nas costas, a pé, até Brasília. “Foi um
protesto contra o descaso da classe política em relação aos efeitos
devastadores da seca. E para exigir soluções concretas, como a transposição das
águas do Rio São Francisco”, lembra o padre. Hoje, as obras de transposição
estão paradas em vários trechos, mas ele não desiste. “Eu vejo hoje as pessoas
nas ruas e acho que finalmente há um sentido nos protestos, como se tivéssemos
acordado. É hora de exigir o fim desse sofrimento”, diz Djacy na sala da casa
paroquial, ajeitando o chapéu na cabeça, já de partida para mais uma incursão.
Na parede, uma foto do ídolo Dom Hélder Câmara.
Andar com o padre
Djacy pelo alto sertão da Paraíba é constatar o que os mais velhos vêm dizendo:
a seca de 2013 é ainda pior que a de 2012. Os sertanejos já a tratam como uma
só. “Os mais velhos me dizem que esta é a seca mais cruel pela qual já
passaram. Açudes que nunca secaram ficaram secos este ano. Esses relatos me
fizeram ter a consciência da seriedade desta seca. Não choveu nada em 2012 e
este ano caiu pouca água. Vem coisa pior pela frente”, acredita o padre.
Logo no início da
estrada de terra que une o centro urbano de Pedra Branca (onde vivem pouco mais
de cinco mil pessoas) à zona rural, o padre faz questão de mostrar vestígios de
dois cemitérios de animais a céu aberto. Estavam cheios de carcaças até abril,
mas uma chuva de quatro dias levou a maior parte das ossadas. As que restaram
são um triste retrato da seca.
“Vi muitos
agricultores chorando. Um me mostrou uma vaca morta e disse: ‘Padre, ela estava
para dar cria, mas morreu antes, de fome e sede’. Quando o sertanejo chora é porque
a situação está crítica. Em minha peregrinação pelo sertão, algumas vezes
voltava e nem conseguia comer, só lembrando dos animais mortos pelo caminho.
Presenciei um cenário de morte”, conta ele, que é diocesano, mas admira o
espírito franciscano. “A renúncia, a humildade. Uma igreja que se sensibiliza.”
Nascido na vizinha
Igaracy há 47 anos, Djacy aprendeu cedo a conviver com a seca. Trabalhou na
roça dos nove aos 13 anos, quando foi para João Pessoa fazer o Segundo Grau
(atual Ensino Médio). Já então se diferenciava da maioria dos sertanejos por
uma característica que conserva até hoje: a indignação. Depois de estudar
Filosofia, em Maceió, e Teologia, em Teresina, Djacy foi ordenado padre em
1994, em Itaporanga, já abraçando as causas sociais.
A fome é uma mazela
contra a qual o padre se insurge ferozmente. “A fome existe aqui, digo sem medo
de errar porque vejo”, ele diz. E mostra. Leva a equipe do DIA até a casa de
Luzia Leite da Silva, de 53 anos, a cuja família várias vezes doou alimentos
nessa seca prolongada. Foi ali, no início do ano, que viu pela primeira vez um
tamanduá sendo preparado como refeição. “Foi meu filho mais o vizinho que
caçaram o bicho. A gente não tinha mais o que comer. Dividimos a carne e durou
dois dias. Nunca fomos de caçar animal assim, o padre sabe que a gente é de
bem”, diz Luzia, entre envergonhada e temerosa. Só fica mais aliviada quando
constata que os amigos do padre não são fiscais do Ibama.
O fogão de lenha no
quintal de Luzia ainda tem brasa dormida, do café que fez mais cedo. Comida
para o almoço são duas piabas, peixes pequenos que o filho trouxe ela não sabe
de onde. “Para hoje é o que temos. Amanhã, não sei”, diz ela, abaixando os
olhos, como se tivesse vergonha da penúria. São cinco pessoas na casa para
dividir as duas piabas. “Eu recebo o Bolsa Família, mas tô com dívida na
bodega, o homem não quer mais saber de fiado”, conta Luzia. O padre pede para
que ela passe mais tarde na casa paroquial. “Vamos arranjar algum mantimento
para amanhã, com fome vocês não podem ficar”. Os dois se abraçam no quintal.
Fincada no alto da cerca feita por paus secos está uma ossada de cabeça de
vaca. Foi a última a se perder na seca. Parece um retrato na parede da sala.
Djacy postou foto do
tamanduá abatido em suas contas do Twitter e do Facebook. O choque das imagens
correndo pela internet faz parte de uma estratégia de guerrilha rural para ele.
“Uso as redes sociais para divulgar essas incursões e pedir ajuda. Já
conseguimos muita coisa. Mês passado vieram sete toneladas de alimentos de João
Pessoa. Quando a gente faz a distribuição, vem multidão das zonas rurais. O
povo não vem atrás de perfume, de roupa. Vem atrás de comida. É gente com
fome.”
O peregrino segue seu
caminho. A próxima parada é a casa do lavrador Clóvis Clementino de Carvalho,
de 77 anos. Ele guarda na memória secas implacáveis, como as de 1958, 1970,
1976 e 1993. Para cada uma, Clóvis destaca uma lembrança doída, um aperto de
fome, até espécie de saudade. Superou todas e está vivo para contar. Na sala de
casa, além de uma rede, fotos de família nas paredes e uma sela para a
montaria, estão empilhadas 50 sacas de milho. “Fiz empréstimo em banco e com
amigos para comprar. Essas são as que restaram para encarar a estiagem que vem
pela frente. Outras 120 sacas já foram embora”, diz Clóvis.
O velho sertanejo
confirma a premonição: o pior vem pela frente. “Minha primeira seca foi a de
1942, eu tinha seis anos. Enfrentei muitas, mas a deste ano superou todas, até
os poços secaram. Comprei ração para salvar os animais, mesmo assim perdi duas
vacas. Tenho seis garrotes, tão magros que não há quem compre”. Depois olha
para o padre, que está quieto escutando as histórias: “Esse padre é um
guerreiro. O que ele fez e faz para ajudar essa gente daqui não é pouca coisa.
Ele olha por menino, por velho, por mulher, por desvalido. Vem comer milho
assado com a gente, é homem sem luxo nem vaidade. O dia que esse padre for
embora, o povo aqui chora”.
Essas lágrimas, os
sertanejos da região podem guardar para outras tristezas. O padre não cogita
outra vida que não peregrinar pelas vertentes secas da Paraíba. “Quase todos os
dias eu vou à zona rural. É o meu trabalho. Pastor não pode ficar de braços
cruzados diante de um flagelo. Seria entrar na contramão do Evangelho”. As
consequências da seca vão perdurar por muito tempo no Vale do Piancó. Nas suas
rezas, sob o altar da igreja de Pedra Branca, ele pede saúde para continuar a
caminhar e que Deus ilumine o povo do semiárido “para que ele se liberte da
alienação política”. Mas o padre sabe que só as rezas não adiantam – os
sertanejos rezam todos os dias. Por isso, Djacy faz jus ao nome da paróquia que
comanda, como se fosse ao mesmo tempo uma sina e um chamado a perseverar, dia
após dia: a santa no altar é Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
O Dia Brasil.







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