“É UMA ROLETA RUSSA”
Crítico de
primeira hora da Lei da Ficha Limpa, o ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF) Gilmar Mendes afirma que o Congresso, passadas as eleições, terá de mudar
o texto. "Me parece que a Lei da Ficha Limpa vai causar vítimas em todos
os partidos com essa amplitude. É uma roleta russa com todas as balas no
revólver, feita pelos partidos ", diz.
Em entrevista ao Estado,
Mendes defende enxugar os benefícios do Ministério Público que hoje são demanda
do Judiciário, como licença-prêmio e auxílio-moradia, critica a falta de
critério para os pagamentos de atrasados e afirma que a lei não permite a venda
de férias pelos magistrados.
O ministro sugere ainda não ser
possível, depois da decisão do STF sobre a Lei de Anistia, discutir a punição a
militares, mesmo que a Comissão da Verdade venha a identificar responsáveis por
crimes cometidos durante a ditadura militar. A seguir, os principais trechos da
entrevista.
O Congresso deveria mudar a lei?
R-Me
parece que a Lei da Ficha Limpa vai causar vítimas em todos os partidos com
essa amplitude. É uma roleta russa feita pelos partidos com todas as balas no
revólver. Ainda vamos ouvir falar muitas vezes da Lei da Ficha Limpa. Vamos ter
muitas peripécias. Acredito que o Congresso, passado o momento eleitoral, terá
que rever essa lei, porque são muitas as perplexidades. O Congresso terá de
assumir a responsabilidade em face da opinião pública. O Congresso talvez venha
a se conscientizar de que não pode ficar aprovando leis simbólicas.
Que problemas o senhor vê na lei?
R-Por
exemplo, os prazos de inelegibilidade são elásticos e infindáveis. A
inelegibilidade pela rejeição de contas de prefeitos, por exemplo, pelos
tribunais de contas. Será que isso é bom? Nós sabemos que temos problemas hoje
nos tribunais de contas. Há uma excessiva politização e partidarização dos
tribunais de contas. Ou nós não sabemos disso?
O senhor considera que possa haver
julgamentos direcionados?
R-Não devemos ser
ingênuos a ponto de não imaginarmos que pode haver manipulação. Imaginemos que
um político importante seja condenado em primeiro grau numa ação de
improbidade. Alguém desconhece a pressão que haverá sobre o tribunal para
julgar também nesse sentido e torná-lo inelegível? Pressão eventualmente
política, inclusive. Quem conhece a estrutura de alguns tribunais sabe que isso
pode ocorrer e vem ocorrendo.
O senhor citaria exemplos disso?
R-Lembre-se
de episódios que foram revelados sobre a antiga composição do Tribunal Regional
Eleitoral do Rio de Janeiro. O TRE do Rio foi o primeiro a sustentar a
necessidade da Lei da Ficha Limpa. À falta de critérios, o tribunal ia os
inventando. O que se diz hoje? Que determinados escritórios de advocacia
conseguiam limpar a ficha das pessoas no TRE. Isso é objeto hoje de
investigação no CNJ. Será que queremos reproduzir esse quadro?
O tribunal pode se deixar contaminar pela
opinião pública no julgamento do mensalão?
R-Tenho
a impressão de que não. A minha expectativa é de que isso não vai afetar,
embora alguns discursos sugerindo esse tipo de atendimento da opinião pública,
como no caso específico da Ficha Limpa, quase levariam no caso do mensalão a um
tipo de juízo condenatório prévio. Tenho impressão de que todos nós estaremos
conscientes de nossas responsabilidades.
O mensalão será julgado neste ano?
R-Tenho
a impressão de que deveríamos julgar este caso. É um caso que onera o tribunal.
Não temos mais justificativa para atrasos. O relator já apresentou o processo,
o gabinete do ministro Lewandowski, que é o revisor, é um dos mais organizados
do tribunal. Ele dispõe de condições inequívocas de trazer esse processo ainda
neste semestre. Todos os ministros estão se debruçando sobre este caso.
Portanto, não vejo justificativa para não julgar este caso logo.
O senhor acha que o foro privilegiado ajudou
o trâmite desse processo?
R-Esse
caso desmente a dita ineficácia do foro privilegiado. Qualquer sujeito
minimamente alfabetizado sabe que esse processo complexo só está sendo julgado
porque está num foro concentrado. Se estivesse espalhado por aí, teríamos
tantos incidentes e habeas corpus que muito provavelmente isso não terminaria
nem em 2099.
Mas o STF decidiu desmembrar o mensalão
tucano. Mesmo sendo mais simples que o mensalão do PT, talvez não seja julgado
neste ano. O tribunal errou?
R-O
tribunal tem optado por essa visão minimalista. A posição que presidiu o caso
do mensalão do PT parece razoável nesse sentido, porque são fatos que guardam
conexão. Já tivemos casos de desmembramento que envolviam crime de quadrilha.
Como fazer essa separação? Talvez estejamos aprendendo com esses equívocos. É
claro que fascina sempre a idéia de desmembramento porque simplifica
enormemente nossa tarefa de lidar com processos tão complexos e provas tão
difíceis.
Ao julgar a Lei da Ficha Limpa, citou-se o
anseio popular. Como o senhor. vê isso?
R-Não
me preocupa a decisão em si sobre a Ficha Limpa tendo em vista esse alinhamento
com a opinião pública. O que me preocupa são fundamentos nesse sentido de que o
tribunal deva se curvar à opinião pública. Aí me parece extremamente
preocupante, porque isso decreta o falecimento dos argumentos constitucionais.
Foi aquilo que numa brincadeira disse: o papel do tribunal não é bater palma
para maluco dançar. Nós estamos na rota errada quando um juiz diz que tem que
atender a anseios populares.
Qual é o risco?
R-O
risco é o tribunal perder a sua função de órgão de controle de
constitucionalidade, de tutela dos direitos fundamentais. Essas maiorias que se
formam no Congresso, muitas vezes, são ocasionais.
O senhor considera que isso ocorreu na
votação da Ficha Limpa?
R-Olhando a Lei da
Ficha Limpa, veremos que ela não teria esse aplauso que teve no passado se
fosse votada hoje. Aquele foi um momento muito específico. Era um período
pré-eleitoral, a maioria dos membros do Congresso concorreria às eleições e não
queria ficar contra a opinião pública. Foi por isso, inclusive, que se produziu
essa lei que é, do ponto de vista jurídico, um camelo. É uma lei mal feita.
Quem passou por perto dela tem que ter vergonha. Quem trabalhou na sua
elaboração tem que ter vergonha. Porque ela é uma lei extremamente mal feita.
Não merece o nome de jurista quem trabalhou nessa lei. E o debate no STF serviu
para mostrar isso.
Como o senhor analisa o pagamento vultoso de
atrasados a juízes?
R-Esse
acúmulo de vantagens gera até uma insegurança jurídica muito grande nos estados
e deve debilitar as finanças estaduais. Não há clareza sobre qual é o numerário
necessário para sustentar o judiciário local. Lembro-me que a presidente de um
tribunal do Nordeste dizia que tinha créditos acumulados de férias em torno de
R$ 600 mil. Eu não consegui entender. Isso não existe nos tribunais superiores.
O Estado mostrou que a proposta de uma
resolução parada no CNJ poderia resolver essa questão.
R-Essa
resolução esteve para ser aprovada creio na minha última sessão do CNJ. Talvez
por acúmulo de pauta, ela não foi votada. Acredito que se impõe votá-la. Essa
resolução já foi adotada pela Justiça Federal e pela Justiça do Trabalho. É uma
resolução que dá segurança a todos. Hoje há uma suspeita que parte desses
pagamentos decorre também de uma falta de critério dos índices de correção
monetária, aos juros que eventualmente sejam impostos.
O senhor concorda com esse modelo: um juiz
tenha 60 dias de férias, pode vender 30 dias e, passados anos, receber até meio
milhão de reais em atrasados?
R-Em
algum momento na história se estabeleceu os dois meses de férias. Mas a lei não
estabelece a possibilidade de venda das férias. E o argumento da necessidade de
60 dias de férias briga com a possibilidade de venda.
Os magistrados argumentam que procuradores
podem vender férias e licenças-prêmio.
R-No
Ministério Público, a lei prevê os dois meses de férias e a possibilidade de
venda, o que gera no Judiciário a busca desse paradigma. A jurisprudência do
STF entende que, desde a Lei Orgânica da Magistratura, não há que se falar em
licença prêmio. A despeito disso alguns tribunais mantêm a licença prêmio e
aceitam a venda. Tudo isso gera esse acúmulo. A magistratura não se devia
raciocinar tentando incorporar os benefícios do MP, mas defender a supressão
dos benefícios do MP, benefícios que não são condizentes com a atual cultura
institucional.
O senhor defende mudanças?
R-Vamos
ter, em algum momento, que conversar com a alguma tranqüilidade em relação a
isso. Na minha gestão eu já tinha defendido a superação desse modelo de dois
meses de férias.
Como o senhor analisa o debate em torno da
criação da Comissão da Verdade sobre punição aos responsáveis por crimes
cometidos durante a ditadura militar?
R-Não
vou me pronunciar sobre isso. É uma discussão que tem que se travar no âmbito
próprio. A mim me parece que o Supremo deu um equacionamento adequado no debate
sobre a Lei de Anistia ao dizer que esse modelo de anistia fez parte do
processo constituinte, não decorre da Lei de Anistia, fez parte da
constituinte. A emenda que convoca o processo constituinte e que dá
legitimidade à Constituição de 88 estabeleceu esse modelo de anistia. Parece
que isso responde a questão que está colocada.
Decisões do STF desde o início do ano vão ao
encontro do manifestado pela opinião pública. O STF está alinhado com a opinião
pública? Está havendo essa preocupação?
R-A
missão do tribunal na defesa dos direitos fundamentais muitas vezes pode ser
marcadamente contra-majoritária em relação à opinião pública ou às posições
dominantes no Congresso. Nós vimos várias decisões que o tribunal tomou nesse
sentido: os processos criminais em geral, como a súmula das algemas, a
progressão de regime em crimes hediondos, os habeas corpus todos, como o caso
Daniel Dantas, união estável homoafetiva, fidelidade partidária. Essa é um
pouco a missão do tribunal em relação aos direitos fundamentais. Isso não significa
que o STF tenha que estar contra a opinião do Congresso ou tenha que estar
sistematicamente contra a opinião pública. Mas é fundamental dizer que, se for
necessário, o tribunal tem que adotar essa postura.
Em casos recentes, ministros têm sugerido
acréscimos ou mudanças nas leis em julgamento, mesmo não sendo julgadas
inconstitucionais. Está havendo algum exagero?
R-Eu
tenho me preocupado um pouco com a questão técnica em geral, tanto que tenho
chamado a atenção para aspectos pontuais. A invocação da interpretação conforme
(interpretar a lei para adequá-la à Constituição) tem servido para uma série de
imprecisões. Muitas vezes não se trata de esclarecer a interpretação de acordo
com a Constituição. Muitas vezes serve para fazer acréscimos à legislação. Me
parece que aqui houve uma certa confusão geral, um certo facilitário. É preciso
ter muito cuidado para que a gente não perca a legitimação técnica.
Por quê?
R-Se
nós começarmos a extravasar, o Congresso também vai se sentir estimulado daqui
a pouco a revogar as nossas decisões.
Alguns ministros dizem simplesmente que uma
lei não é razoável ou proporcional e sugerem mudanças. Há um certo
voluntarismo?
R-Não diria que
isso contamina as decisões. Mas às vezes há algumas invocações gratuitas em um
ou outro voto. O risco é a mera invocação da proporcionalidade e da
razoabilidade para justificação posições pessoais.
F:
O Estadão.
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